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quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A Brancura de uma Página em Branco.

Blá-e-Tal01

A Brancura de uma Página em Branco

Um verdadeiro desafio, daqueles que são efetivamente desafiadores, é você tentar escrever algo do nada. Simplesmente abrir uma página em branco do Word e ir desenvolvendo idéias, se não com um assunto bem definido, pelo menos com algum nexo ou organização.

Quando não se tem idéias para escrever, o branco da página em branco é de uma brancura tão branca, mas tão branca, que assusta até o mais criativo dos mais geniais dos mais inteligentes cronistas. Assim que uma pessoa, que escreve razoavelmente seguido, se depara com tal branco, um pânico toma conta e até a alma estremece. Garanto que é bem mais fácil quando determinam algum assunto e as idéias precisam ser desenvolvidas exclusivamente sobre aquilo.

Certa vez, tive um pesadelo com o tal do branco. Eu estava vegetando frente à televisão em uma noite chuvosa e bucólica. Caiu um raio em algum lugar, a televisão desligou e não voltou a funcionar. Foi então que liguei o computador, porém nada de Internet. Só restou a página em branco. O Word abriu, tomei um gole do café, olhei fixamente para aquele branco e ele me hipnotizou. Ainda no pesadelo, acordei 23 semanas depois, barbudo e pelado, deitado entre as curiosas estátuas da ilha da páscoa. Aí eu acordei de verdade.

Não ter idéias para escrever e tentar escrever, é como sair de carro e só decidir aonde ir, quando já estiver indo. Se bem que sair de carro assim é bem mais fácil, pois a pessoa está condicionada à apenas decidir seu destino. Em uma página em branco, o motorista das palavras não tem esse poder. Ele não pode decidir aonde ir. Ele depende de uma combinação de circunstâncias que é mais difícil de acontecer do que alguém jogar na loteria só uma vez na vida e ganhar. É preciso que venha sorte, competência, dom, prática, audácia, sem-vergonhice, inteligência, conhecimento, memória e café, todos ao mesmo tempo. Se esses atributos não surgirem juntos, só sai enchimento de lingüiça mal feito.

Como é muito difícil de surgir aquela combinação do nada, enchimento de lingüiça com desenvoltura vale. E é uma ótima arma para enfrentar a página em branco. Acredito, inclusive, que a maioria das crônicas geniais que leio por aí saíram de um branco bem branco e, conseqüentemente, saíram de enchimento de lingüiça.

Para se fazer um texto bacana a partir do branco, que engambele os leitores, existe um fator indispensável: A capacidade lingüiça-enchetória do escritor. É uma habilidade muito admirável. Para um escritor encher lingüiça com destreza, a ponto de seus leitores não desconfiarem, são necessários atributos como o dom e o talento.

Dom. Essa palavra e seu significado me intrigam a vida toda. Todo dia passam por mim pessoas com todo tipo de dom. Dom para música, para esportes, para desenhar, fotografar, falar, escutar, perceber, azucrinar, ajudar, atrapalhar, escrever, ensinar, fazer acrobacias com cuspe. São infinitos, e como soa o clichê: Todos tem dom, descobrindo ou não.

Nunca soube explicar verbalmente o que é dom. É do tipo de coisa “sei o que é mas não sei explicar”. Dom é algo divino? É uma combinação de fatores na formação de determinada pessoa? É uma soma de suas competências e habilidades? Essas competências e habilidades vem de casa? De berço? De útero? De óvulo e espermatozóide? Não sei responder, só acho. Acho que é algo divino, determinado por Deus. E acho que é como beleza: Ou você tem, ou você não tem. Se uma pessoa nasce feia, morrerá feia. Se uma pessoa nasce sem determinados dons, como o de escrever a partir do nada, morrerá sem eles. Eu por exemplo, nunca conseguirei fazer acrobacias com cuspe ou acertar uma bicicleta onde a coruja mora. Sou eu quem diz que isso é algo divino. Tenho certeza, mas minhas certezas só são certeza para mim.

Falando em certezas e achações, está aí outra coisa que nunca consegui engolir. Existe um pensamento filosófico que diz que nada é certeza, a não ser a morte. Essa lógica diz que o que é dito e certo na ótica de uma pessoa, não é assim para a outra. Para cada pessoa há uma percepção diferente do mundo. Atrás de cada olhar, há um cérebro que interpreta o que está sendo olhado de uma forma completamente diferente do que qualquer outro indivíduo. Verdade para um pode não ser para outro.

Eu acho um papo furado sem tamanho. Se morte é certeza, logo, vida também é. Se alguém morre, é por que esteve vivo. Duas certezas. Se alguém vive é porque nasceu. Três certezas. Nasceu-se, é porque duas pessoas tiveram relações sexuais. Quatro certezas. E assim várias certezas vão surgindo.

Realmente fico inconformado com esse tipo de filosofia. E assim como este pensamento de que a única certeza é a morte, tantas outras dançam em bibliotecas e universidades por aí. Quando se lê ou se estuda algum artigo assim, conforme a pessoa reflete, até vai vendo sentido nas suposições e afirmações filosóficas. Esses estudos são muito inteligentes e profundos e levam quem reflete por um caminho lógico muito racional. Um caminho coerente e eloqüente. Mas está aí o problema dessas filosofias. São tão inteligentes tão profundas, tão racionais, que não tem sentido algum. Até possuem aplicabilidade teórica e prática, mas são inúteis. Pra que serve saber que a única certeza é a morte?

Algo ser tão inteligente a ponto de ser burro é um grande paradoxo, e paradoxos são legais. São contradições que não se anulam. É dor que desatina sem doer, diria Camões. O paradoxo é um fenômeno pensamento, do qual alguns escritores se valem para enrolar seus leitores. Quando se pára pra pensar em um paradoxo, acontece um nó no cérebro. É impossível perceber a lógica de uma dor que dói, mas não se sente. Então as pessoas acham que por não entenderem esta lógica, ela é inteligente.

Não existe sentido em paradoxos. Certos autores introduzem paradoxos em suas dissertações por faltas de argumentos. As pessoas ficam ali tentando entender como algo pode ser “complexamente simples” e por não chegarem à conclusão nenhuma, entendem que tal paradoxo é um argumento inteligentíssimo. Justamente por serem impossíveis de entender parecem inteligentes. É possível algo ser complexamente simples? Não. Ou é complexo é simples, não pode ser os dois.

Paradoxos só servem para suprir a falta de argumentos e instaurar o silêncio da reflexão infinita. E o infinito é outra das coisas que não há como explicar. Por mais imaginativo que seja uma pessoa, ela, de fato, jamais conseguirá imaginar o infinito. Os números são infinitos, o universo é infinito, o tempo é infinito. Deus é infinito, e quando ele engenhou nosso cérebro, acho que instalou um programinha de segurança em nossas cabeças. O mesmo Deus que dá os dons às pessoas fez com que algo bloqueasse nosso raciocínio ao pensarmos no infinito. Não há filosofia que explique os fenômenos deste congelamento de nossa razão diante da infinitude.

Quando eu era criança, sempre tentava contar até o infinito. Não consegui e pelo que bem lembro, cheguei até em torno de duzentos. Até conseguiria mais, mas como toda criança parcialmente normal, eu perdia a paciência e ia fazer algo menos chato, como brincar de carrinhos, jogar futebol sozinho para driblar o vento ou suar no esconde-esconde com os primos e os guris da vizinhança. Isso, claro, antes de eu entrar na escola.

“Eu era feliz e não sabia”. É o que pensa toda criança no primeiro dia de aula, lá no primário. Se as crianças choram, fazem birra, fazem manha e reclamam antes dos 5 ou 6 anos é porque não sabem o quão chato é ter responsabilidades. Qual a responsabilidade de um ser humano de cinco anos? Nenhuma.

Não ter que conviver com responsabilidades é uma maravilha. É viver sem ter preocupação. É ter uma vida leve, mansa. São pássaros cantando no amanhecer. É brisa que de um campo florido que nos enche os pulmões. É um soneto de piano que afaga aos ouvidos. É o Hakuna Matata em sua plenitude. É não ter que pensar no infinito. É não ter que se render a um paradoxo e achá-lo inteligente só por não conseguirmos explicá-lo. É não ter que tentar entender filosofias muito inteligentes. É não ter que ficar se perguntando se temos ou não determinado dom. É não ter que enfrentar uma página em branco sem idéias.

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Dedico esta crônica à todos que tiveram coragem de ler ela.
Do fundo do coração, mesmo!

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